Digam-me se estou sendo abusado: se tenho uma empresa e nela trabalham pessoas, e se alguma dessas pessoas me pede para declarar, no papel da empresa, que ela trabalha ali desde a data tal, fazendo a atividade tal e que trabalha tantas horas por semana, e sendo tudo isso verdade, por que eu me recusaria a declarar isso oficialmente? Se eu tenho uma escola e um aluno me de para dizer que ele estudou ali, fez o curso tal, e precisa que eu informe outras informações pertinentes, qual a dificuldade de colocar isso no papel? Será que todo mundo nesse país faz tudo tão errado que tem medo de ação trabalhista ou sei lá o que mesmo quando está declarando a verdade?
Olha, eu estou sempre torcendo por todos aqueles que estão na fila do BIQ, na fila da entrevista, dos exames médicos, na fila do pedido de passaportes e em outras filas semelhantes. Sei que o processo é demorado (eu estou nele!), que as regras mudam de forma absurda e num período de tempo esdrúxulo. Mas sabe o que me dá aflição de verdade nesse processo?
Quem ainda não conseguiu entrar.
E, principalmente, quem vem tentando há um bom tempo dar entrada em algum dos processos de imigração e não consegue, seja por motivos pessoais, seja porque, com uma mudança atrás da outra, as pessoas acabaram prejudicadas na formação e/ou na pontuação. Olha, é dose!
Alguém bem próximo a mim está nessa situação. A primeira grande mudança recente, a de 2011 (que incluiu os testes de línguas), não foi um grande impacto pra ele. Até ali, seria um item a mais, um gasto a mais, mas nada incontornável. O problema foi o que veio depois e, principalmente, a mudança de agosto do ano passado: de alguém que tinha pontuação sobrando para vender como milhas aéreas, ele foi para alguém que ficou devendo um tanto considerável. O TCFQ, que seria só um documento extra, passou a ser essencial pra ele. O IELTS, idem. De repente, alguém que ia estudar sem cobrança demais e se daria bem com qualquer pontuação se viu tendo de obter X e Y nos testes pra poder ter direito a tentar dar início ao processo.
Tem sido bem difícil. Semana passada, nos encontramos e sentei para ajudá-lo, e aí me dei conta de uma coisa que ele não estava levando em consideração: aquele pontinho que você ganha pela capacidade de autonomia financeira, que nada mais é colocar o dedão por extenso assinar a declaração dizendo que você terá Z moedas de ouro para levar para o Québec e se manter nos três primeiros meses. Gente, como fez diferença!
Sintam o drama: o diploma dele (que, na verdade, ele ainda não recebeu), pode valer 6 ou 8 pontos pela tabela oficial. Somados os demais quesitos (incluindo o pontinho lá de autonomia financeira), ele pode estar, nesse momento, com 47 ou 49 pontos. Dá pra entender o que é isso, sabendo-se que falta pouco mais de um mês para expirar o prazo das regras atuais?
Enfim, conversei com ele, ele considerou, considerou, considerou, e agora vai mandar o que tem. Está juntando tudo e foi pedir as declarações das empresas onde trabalho e do curso que fez (porque o diploma oficial ainda não saiu). Resultado: uma empresa não teve problema; a outra está hiper-desconfiada e o responsável vai ter de "consultar o diretor para ver se é possível". Com a escola, quase o mesmo: "podemos até declarar que você foi aluno e concluiu o curso, mas número de horas do curso, histórico e essas outras informações, não". Notaram o "podemos até declarar"?
Agora, perguntem se esses estabelecimentos estão dispostos a tirar uma cópia disso e bater um carimbo de "confere com o original"? "Nossa, estranhííííííssimo isso, né? Deve estar pra entrar na justiça, e o caso deve ser bom, então não vou dar corda pra eu mesmo me enforcar". Ninguém disse isso, mas parece ser o pensamento comum. Tá certo que, por tradição, a gente recorre aos cartórios para cópias autenticadas, mas, se você não precisa de nada que exija a intervenção de um cartório, qual o problema de você bater um carimbo numa cópia de um documento que você mesmo emitiu?
Só consegui concluir que, no Brasil, a desconfiança nos outros é tão grande, que a postura defensiva é tão comum e que estamos tão acostumados a fazer a coisa de maneira tão torta que não temos nem coragem de declarar algo que nós mesmos sabendo ser verdade. Então, é melhor eu me resguardar e não confirmar nem confirmar que isso ou aquilo aconteceu, do que falar a verdade e me dar mal.
Enfim, no caso que expus ali em cima, já está claro que as declarações não vão ficar 100% nos moldes que o BIQ quer, e que ele vai ter de se valer de cópia autenticada em cartório para tentar fazer com que o processo seja aberto. Estou torcendo muito, mas muito mesmo, para que tudo dê certo e ele consiga. O processo tem sua dose de agruras, peculiaridades e exigências estranhas; mas nada supera, eu acho, a pessoa pedir um documento que só confirme uma situação aqui no Brasil e geral se recusar, como se fosse ilegal. A impressão que fica, realmente, é a de que tudo se faz tão errado aqui no Brasil, que até quando você não só sabe a verdade como é responsável por ela, é melhor falar o mínimo possível e não se comprometer.
À bientôt!