quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Meu primeiro -24ºC (com gostinho de -39ºC!)

Quando o cidadão resolve sair de um país tropical para ir morar em um país em que as temperaturas são baixas (pelo menos, pelos padrões brasileiros) durante a maior parte do ano, das duas uma: ou ele gosta de frio ou está disposto a encará-lo como um problema menor frente às vantagens desse novo país. Eu estou no primeiro grupo, mas a ideia de ter de enfrentar temperaturas beeeeeeeem baixas me deixava um tanto apreensivo. Será que eu iria gostar? Será que eu iria aguentar? Será que, depois de anos detestando o verão perene à la Westeros do Brasil, eu iria choramingar como um menininho em idade pré-escolar e pensar que, no fim, o calorão me fazia falta?

 Segundo os dados e os relatos do pessoal que conheço aqui, os dois últimos invernos foram de lascar. Bem mais frios e longos do que de costume. Eu cheguei na metade de março e encarei alguns dias de sensação térmica por volta dos -10ºC ou -15ºC, mas o povo falou que fez muito mais frio antes. Este inverno aparentemente também está fora da escala, mas do outro lado do medidor: o inverno demorou a começar pra valer, e as temperaturas registradas têm sido, em geral, mais altas que a média. Daí já comecei a pensar que ia ter que esperar no mínimo um ano pra poder conhecer o inverno mais de perto.

Porém, como bem falam por aqui, o inverno tarda, mas não falha, e isso significa que, mais cedo ou mais tarde, você descobre as respostas a essas (e outras) perguntas. Semana passada, finalmente tive a minha primeira grande experiência frigorífica no inverno montrealense! No sábado, tinha que devolver um DVD para a biblioteca. Olhei lá pra fora e tinha neve pra todo lado. Consultei a temperatura externa: -24ºC, com sensação térmica de -39ºC!! Quase caí pra trás! De repente, a curiosidade em experimentar frio pra valer foi substituída pelo receio de desaparecer em meio ao frio e ao gelo e só ser reencontrado em abril, com um aspecto mais ou menos estilo Han Solo na carbonita.



Fiquei naquela: "Vou? Não vou? Vou? Não vou?" e, nesse meio tempo, passaram algumas almas andando calmamente pela rua. "Almas" no sentido poético figurado, porque estavam todas bem vivas e indo cuidar da vida. Isso me renovou o ânimo e me lembrou do fato de que, se o povo fosse parar a vida porque está muito frio lá fora, o Canadá teria que se mudar pelo menos uns três meses por ano. Então, respirei fundo, me empacotei todo e lá fui eu, igual um bonequinho do South Park.




O momento em que você sai para o ar frio lá fora não é o melhor momento para dizer se você acertou ou não no indumentário. Como o corpo está quente por estar no aquecedor, você ainda conserva esse calor durante um bom tempo. Depois de alguns minutos do lado de fora, contudo, o calor excessivo se dispersa e aí você consegue ter uma noção de se o seu passeio pelo guarda-roupa foi eficiente. Eu tenho apenas um casaco feito para frio heavy metal de verdade. Os outros, foram trazidos do Brasil. Fiz uma combinação de roupas que julguei ser suficiente e, para aquele dia, acertei. Quando você não está acostumado com temperaturas abaixo de zero durante dias a fio, (e variando de -24º a -1ºC), não tem muito jeito: tem que experimentar o que funciona pra você e ir aprendendo com os erros. Esse casaco do qual falei me faz passar calor em temperaturas por volta de -5ºC, -10ºC. Então, combino as roupas e casacos que tenho aqui de forma a minimizar o frio e o calor. Sim, porque pode estar frio na rua, mas, quando você vai para o metrô ou entra em algum prédio, está quente, e se você estiver com 72 casacos, ou tira tudo e fica segurando, ou vai suar em bicas até voltar pra rua. Então, às vezes mais vale sentir um pouco mais de frio no trajeto casa-metrô-escola/trabalho do que ficar suando em bicas ou carregando roupas como se estivesse recolhendo donativos.

Enfim, a experiência foi bastante positiva, no fim das contas. Gostar ou não de frio é muito pessoal, mas acho que pouquíssimas pessoas diriam que adoram ficar sentadas no parque quando está fazendo -20ºC. O que o frio faz comigo é que me sinto mais disposto, com mais energia, e meu sono costuma ser bem melhor quando está friozinho do que quando está fazendo calor. E agora que sei que posso sobreviver a sensação térmica de -39ºC, acho que não preciso ter medo de sair de casa.

Quer dizer, ainda não experimentei tempestade de neve... Gê-zuis!

À bientôt!

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Certificado de Francês da Universidade de Montreal - Parte VI

Confesso que minha primeira sessão do Certificado de Francês da Universidade de Montreal ficou aquém do que eu imaginava. As aulas de francês oral, embora boas, eram poucas demais para permitir que eu aprimorasse meu discurso em francês (e a turma não ajudava muito, como contei). As aulas de francês escrito... bom, já chorei as pitangas nesse post aqui, então não vou repetir. Fiquei com boas notas no fim do trimestre, mas comecei a me perguntar se o que viria pela frente seria no mesmo nível (e, por tabela, se valeria a pena continuar, nesse caso). Porque ninguém merece ir para um curso sentindo que está indo pra forca.



Mas vamos por partes: quando fui aceito no programa do certificado e tive que passar por uma conselheira acadêmica (isso não é mais obrigatório), ela havia falado pra eu fazer, de início, um curso oral e outro escrito (que foi exatamente o que fiz na primeira sessão) e, na sessão seguinte, fazer um de fonética e um outro de francês escrito. Na palestra de informação sobre o certificado, a diretora do programa já havia enfatizado que muitos alunos não se preocupam com a parte escrita e acabam tendo que correr atrás do prejuízo no fim do programa ou mesmo depois de terminar o curso. Minha conselheira, na época, voltou a bater na mesma tecla. Disse para eu não deixar de lado a escrita porque era uma parte importante do curso e da língua, principalmente no mercado de trabalho.

Só que, depois do meu primeiro curso de francês escrito desanimador e da minha incapacidade de falar francês tranquilamente mesmo em situações simples, eu resolvi jogar as sugestões da dona conselheira no mato. Quer dizer, pelo menos em parte. Ora, eu estou com dificuldades é pra falar, certo? O curso foca nas partes oral e escrita, mas deixa a escolha sobre o que privilegiar por minha conta, certo? Não tive nota ruim no curso de francês escrito e ainda fui elogiado, certo? Tá certo que esse último argumento deve ser aceito com ressalvas por causa da qualidade duvidosa da aula, mas, enfim, o que eu quero dizer é que, por mais que a conselheira esteja lá pra ajudar, ela não conhece tudo a meu respeito (aliás, conhece nada). E, assim, prefiro assumir a responsabilidade do que eu fizer no curso em vez de, no fim, colocar a culpa na pobre senhora.

Com esse discurso de auto-afirmação na cabeça, me inscrevi no curso de fonética e de compreensão oral. No primeiro, porque, afinal, é um curso de prática oral, e eu fiquei com a impressão de que o meu sotaque era, digamos assim, poderoso; e no segundo, porque é um dos cursos obrigatórios, mas que eu fiquei feliz de pegar porque a gente, teoricamente, vai ser exposto a diversos sotaques de francófonos mundo afora.

Ainda assim, depois do trimestre passado, não posso dizer que estava muito IPI-IPI-URRAAA em relação a voltar às aulas. Minha esperança era que os cursos não fossem ruins e que eu conseguisse treinar mais o francês, nem que fosse batendo papo no corredor.



Compreensão Oral

Essa foi a primeira aula da sessão e, rapaz, que diferença! No trimestre passado, eu saí traumatizado da sala de aula; dessa vez, saí aliviado. Não por achar que a aula vai ser fácil, mas porque a professora não só manja dos paranauê como se mostrou totalmente aberta e receptiva. Ela não faz a linha professora amiga e descontraída, mas ela se esforça. É palpável a energia que ela dispende pra tentar deixar todo mundo à vontade. 

A turma também parece um pouco mais homogênea do que a das minhas aulas anteriores. Há pessoas que falam menos que eu, mas a maioria está mais ou menos no meu nível. Os alunos-estrela da sala são dois romenos. Ambos já estão aqui em Montreal há mais de dois anos. Não que o tempo aqui seja necessariamente proporcional à qualidade da desenvoltura em fazer biquinho: uma colombiana que senta do meu lado está aqui há cinco anos, diz que fala francês há três, e ainda tem não só um sotaque bem carregado como comete erros gerais na hora de falar. Mas fala, e se expressa bem. Ah, fora eu, não há brasileiros.

Na aula, basicamente a gente assiste a vídeos ou escuta o áudio de vários tipos de mídia, desde trechos de séries de TV francesas até entrevistas com o Seu Zé da Quitanda, que mora em Rimouski. Eu consigo entender uma boa parte da maioria do que é passado, mas vou te contar que quando são dois quebecos falando descontraidamente num bar com a música rolando e o povo falando em volta, dá vontade de voltar pra casinha, viu? Já teve entrevista com senegalês, pesquisa de opinião com idosos franceses, mas põe dois quebecos adolescentes pra cantar Frère Jacques e parece que você tá ouvindo Klingon.



Tivemos a primeira prova semana passada. Assistimos um vídeo de um programa que tinha dois convidados para falar sobre os prós e contras do inverno. Em seguida, tínhamos que resumir oralmente o que tinha acontecido no vídeo, identificando quem era a favor e quem era contra, com os respectivos argumentos. Parece simples, e até que é, mas os sotaques da apresentadora, dos entrevistados e dos convidados eram totalmente diferentes. Cada um vinha de um canto do mundo. Segundo, o vídeo não tinha nada tão óbvio quanto "então, Seu Jão, me diz aí três argumentos pró-inverno". Não, um começava a falar, outro respondia, um terceiro se metia, a apresentadora cortava pra remeter a um outro assunto ligado e daí voltava todo mundo pro ponto de partida. Não quero passar a impressão de que a prova era impossível; eu não acho que tenha ido lá muito bem, mas isso, basicamente, porque não estou com os ouvidos ainda tão afinados pro francês. Fiz o mesmo tipo de exercício em inglês na McGill, por exemplo, e lá não tive problema algum, simplesmente porque estou mais acostumado com o inglês, mesmo com sotaques diferentes. Então não tem outro remédio: é aumentar a frequência do que eu escuto em francês (atualmente, uma hora de vídeo e outra de áudio por dia) e dar tempo ao tempo.

Fonética

Já digo logo: disparado, a minha aula de francês favorita de todos os tempos! Fui meio sem saber o que esperar, e ficava imaginando diagramas da boca e garganta humanas, com indicações de onde colocar a língua, como fazer as cordas vocais subirem e como torcer as amígdalas até dar cãibra. Felizmente, a aula é muito, mas muito melhor que isso!

De cara, a professora já disse que a gente teria que se divertir na aula, e isso por uma razão muito simples: não tem como você entender de fato o que está falando errado e consertar se você não exagerar os sons. Isso dá origem a todo tipo de caras e bocas que vocês possam imaginar. De início, fiquei um pouco preocupado com essa abordagem Xou da Xuxa na aula, principalmente porque os alunos se sentiram tão à vontade que começaram a conversar e rir mesmo durante as explicações. Mas isso não tardaria a mudar. Mwahahaha!

Depois da primeira aula, que teve mais apresentação que conteúdo, cada aluno teve que fazer uma gravação de áudio lendo um texto que a professora escolheu. Ela avisou que seria bem rígida nessa avaliação, porque era pra dar uma ideia bem real e próxima de como um falante nativo percebe o sotaque e a pronúncia de um não-nativo. Então, ninguém devia se assustar se tirasse C ou D. Daí, com essa pouca pressão, lá foi o Doug fazer a gravação dele. Gravar não foi ruim: o ruim mesmo foi ter que ficar escutando minha própria voz e me dar conta que Carmen Miranda cantando com banana e abacaxi na cabeça soava mais francesa que eu. Enfim, não dava pra ficar lá no laboratório de línguas da universidade a noite toda, então teve uma hora que segurei na mão de Odin e fui. Ou melhor, cliquei em "envoyer". 

A professora tinha avisado que deixaria um comentário geral na página do nosso curso no sistema da universidade, e que entregaria uma cópia do texto com anotações mais detalhadas na aula seguinte. Só fui receber o meu comentário no dia da aula, mas valeu a pena a espera:



Gente, que alívio ler isso!!! Eu juro como estava pensando que ia ter que suar a língua, mas parece que vou conseguir levar a aula um pouco mais tranquilo! :D

Pensei que a professora, na verdade, tivesse feito um terrorzinho pra obrigar todo mundo a se esforçar na leitura, mas que ela fosse distribuir As e Bs no fim das contas. Mas me enganei: não sei a média da turma, mas vi um monte de C- nas folhas das pessoas que estavam mais próximas (daí a razão de todo mundo ter passado a rir menos e conversar menos fora de hora). A professora anunciou que só tinha dado um A. Como ainda não tinha decorado os nomes, ela perguntou quem era. Fiquei quieto de início porque aoooooonde... se eu já travo quando uma pessoa está me olhando, imagina com uma turma inteira olhando pra minha cara. Mas não teve jeito. Num outro momento, a professora me chamou pelo nome e, na frente da turma, falou sorrindo: "Ah, foi você que tirou A! Parabéns! Por que você  não falou nada quando falei que tinha sido o único A da turma?". Fiquei roxo de vergonha, tentei dar uma explicação furada que unia horóscopo com a atual situação política da Turquia, tudo isso em francês desconexo, mas a professora percebeu o meu constrangimento e voltou pra aula.

A aula, em si, consiste em fazer exercícios de conscientização (ou seja, saber, de fato, onde você está colocando a língua na hora de falar e descobrir porque não está saindo esse ou aquele som), tentar corrigir e fazer exercícios de leitura. Parece banal, mas é de uma ajuda inestimável! Estamos fazendo contraste de sons a cada aula: na primeira foi entre os sons /i/ (como em finir), /u/ (como o ou em tout) e /y/ (como o u em plu). Passamos para os diferentes tipos de "o", os diferentes tipos de "e" e por aí vai. Estou adorando e, além de corrigir palavras que eu pronunciava de forma menos distinta, ainda estou aprendendo o alfabeto fonético internacional, que é uma mão na roda na hora de fazer os exercícios (e descobrir como se lê essa ou aquela palavra em dicionários que possuem transcrição fonética).

Bom, é isso. Estou curtindo muito as duas aulas, então esse trimestre tem tudo pra ser mais leve (embora não menos trabalhoso) do que o anterior. Continuo com o objetivo de melhorar o francês, mais do que obter essa ou aquela nota, e se eu chegar ao fim da sessão melhor do que comecei, já terá valido muito a pena!

À bientôt!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

É oficial: eu preciso de álcool

Estou quase terminando o próximo post sobre as minhas aulas na Universidade de Montreal, mas essa eu tinha que vir aqui contar HOJE, no calor do momento: eu, preocupado como sempre em tentar melhorar meu francês, cheguei pra minha professora de fonética no intervalo da aula (um momento sempre mais informal) e disse:

—O que eu posso fazer pra diminuir meu sotaque? Quando escuto os francófonos falando, eu sei que não soo como eles. Mesmo quando termino uma frase sem tropeçar nas palavras, mesmo engolindo as mesmas sílabas e letras que eles engolem, algo não está saindo direito. O que eu devo fazer?

A professora parou um instante, olhou pra mim, franziu a testa e fixou os olhos nos meus. Deu uns três segundos e ela pousou a mão no meu ombro:

—Doug — disse ela por fim — Acho que o que você precisa é começar a beber.

Não sei qual a cara que fiz, mas ela não perdeu tempo:

—Começa com duas caipirinhas que você vai ver.

Gente, tem como não gostar dessa professora? Acho que caso com ela até o meio do ano!

À bientôt!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Vídeos

Volta e meia recebo e-mails com pedidos para eu postar mais vídeos e fotos. O problema é que eu sou um tanto lesado: ao contrário da maioria das pessoas, para quem o ato de sacar o celular e apertar o botãozinho da máquina fotográfica é o caminho mais óbvio e natural após exclamar algo do tipo "nossa, olha que legal aquilo!", eu só vou me dar conta que poderia ter batido uma foto ou feito um vídeo quando já estou em casa, fazendo algo nada a ver, tipo, assistindo Agente Carter.

Mas eis que, semana passada, milagrosamente, num dia em que a temperatura estava por volta do 0ºC — permitindo, portanto, que eu tirasse as luvas sem gritar feito um garoto em idade pré-escolar —, vi a neve em volta de mim e pensei: "opa, por que não fazer um vídeo pra mostrar pro pessoal lá em casa?". Então, fiz três. Curtinhos, e só pra mostrar a neve. Perdão pelo treme-treme constante, mas eu estava andando pra UdeM e ainda tenho muito feijão e arroz pra comer até virar cameraman.







À bientôt!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Certificado de Francês da Universidade de Montreal - Parte V (Problemas no Paraíso (2))

Bom, 2016 já chegou, se instalou, mas no meu relato das aulas da Universidade de Montreal, ainda estou em 2015! Então vamos lá contar o resto e dizer qual foi o resultado final.

No último post sobre o assunto, falei da aula de francês oral, que foi proveitosa, apesar de não ser algo que vá ficar na minha memória para sempre. Aproveitei a oportunidade para falar, conversar, explorar o conteúdo que a professora passava, mas não houve momento algum em que eu me sentisse à vontade pra valer na aula. Uma grande parte disso é culpa da minha ansiedade, então há que se relevar. Pois bem, se a de francês oral foi assim, a de francês escrito corre o risco de ficar guardada na memória por ter sido a primeira aula verdadeiramente ruim que tive em terras canadenses.




Eu havia contado em post anterior que, já na primeira aula, a professora passou textos de Voltaire e La Fontaine pra gente analisar. Ali, pego de surpresa sem nem ter tido chance de assentar o derrière na cadeira direito, eu achei que o problema era eu: eu é que estava chegando com o bonde andando (o rapaz vai parar no nível 6 e quer moleza?), eu é que tinha inadvertidamente feito magia negra e ido muito melhor no teste de nivelamento do que meu domínio do idioma, de fato, me permitiria, eu é que iria ter que correr atrás do prejuízo. Pensei seriamente, durante duas semanas, em desistir da aula, trancar e esperar eu evoluir um pouco mais no francês oral, porque me dava cólicas pensar em ser chamado, na frente de todo mundo, para analisar textos numa língua estrangeira. Mas resolvi encarar porque já estava molhado e a chuva não tinha cara de que ia parar.

Pois bem. Ainda bem que fui adiante, porque as aulas foram meio que uma piada. Eu até agora não entendi a razão de a professora brincar de análise de texto com a gente na primeira aula, porque não usamos aquilo praticamente pra mais nada. Há uma vaga ligação entre o que ela mostrou sobre a análise e o que vimos nas outras aulas (que tiveram mais a ver com textos persuasivos e resenhas), mas tenho a ligeira impressão que as duas ou três primeiras aulas foram especialmente elaboradas pra assustar os alunos mesmo. Aliás, lembro direitinho de ela dizer, ao final do primeiro dia, que quem quisesse abandonar a aula tinha até o dia tal, então, ainda estava em tempo. Convenhamos: isso, no mínimo, não é encorajador, certo?

O método de aula dela se resumia a passar algumas orientações de livros e sites, copiando palavra por palavra no quadro, e, às vezes, atacar pontos gramaticais usando exatamente os mesmos exemplos da gramática que ela levava para a sala de aula. Ela repetia, de forma incansável, que precisávamos aprender a ler para aprender a escrever, mas havia pouquíssimos conselhos práticos sobre como fazer isso. E não é que a professora não soubesse o conteúdo: ela, claramente, já estava bastante habituada com os assuntos que levava (e talvez esse tenha sido um dos problemas: ela já estava no piloto automático) e tinha postura de quem entende do assunto. Ainda assim, raramente passava qualquer coisa para fazermos em casa (ou mesmo na sala) o que mostra muito sobre quão proveitoso foi o curso: uma aula de francês escrito no qual você praticamente não escreve? De repente, me lembrei de várias histórias de francisation que me contaram e pensei que, pelo menos, quando as aulas na francisation são ruins, estão te pagando pra você não aprender ou aprender mais ou menos. No caso da Universidade de Montreal, a gente está pagando, né?




Enfim, eu nunca recebi um dos (raros) deveres de casa de volta. Não sei se ela deu pro cachorro comer, se usou pra desenhar coraçõezinhos enquanto falava ao telefone, se usou como porta-copos ou o que for. O fato é que eu nunca vi os erros ou acertos que cometi nessas atividades. Quanto às provas, fizemos três. Fui receber a nota da primeira só um mês e meio depois de tê-la feito, depois, inclusive, de já ter feito a segunda prova. Ou seja, eu não sabia como estava indo no curso até depois da metade dele. Se eu estivesse dependendo de boas notas no histórico por algum motivo (para bolsa ou para ser aceito num curso de pós-graduação, por exemplo), eu teria ficado sem saber como estava me saindo até depois do prazo dado para abandono. E aí seria adeus bolsa ou carreira acadêmica.

Fora isso, boa parte do que ela falava era expressado de forma incrivelmente confusa. De novo, de início, achei que era eu. O burrinho aqui ainda não entende francês bem o suficiente, precisa treinar, blá, blá, blá. Mas aí eu me dei conta de duas coisas: primeiro, eu entendia, sim, praticamente todas as palavras que ela falava. O problema é que elas não faziam lá muito sentido e, não raras vezes, entravam em contradição com outras palavras que a própria professora tinha dito em aulas anteriores. Segundo, não era incomum que os outros alunos pedissem para ela repetir alguma coisa várias vezes, principalmente quando se tratavam de instruções para os deveres e provas. Aliás, nunca vou esquecer o dia em que chegamos para uma das provas, ela disse que teríamos que fazer uma synthèse e um aluno levantou a mão e perguntou o que era uma synthèse. Uma hora o texto que tínhamos de escrever deveria ter 500 palavras, na aula seguinte, deveria ter 800. Questionada, a professora falava que o mínimo era 500, mas que ela não aceitaria mais de 600. E o texto tinha que ter introdução, dois parágrafos de desenvolvimento e conclusão, e o terceiro parágrafo de desenvolvimento tinha que apresentar um contra-argumento e refutá-lo. Mas, senhor! Não eram só dois parágrafos no desenvolvimento? Não, tem que ter três. Mas tudo tem que ter só 600 palavras no máximo? O máximo é de 600 palavras, mas ela iria corrigir textos que tivessem até 700 palavras. Tudo que estivesse além disso seria descartado e afetaria a nota.



Diante desse quadro de Salvador Dali no País das Maravilhas de Mordor, resolvi que não valia a pena discutir. E nem me estressar. Quando a louca pular e começar a dançar, pula e dança junto até a música acabar e você poder sair sem que ela note. Então fiz os (poucos) deveres e todas as provas, e só falei em sala de aula quando expressamente requisitado. A prova final foi, na verdade, um trabalho para o qual tivemos que fazer uma pesquisa sobre um tema, reunir artigos que girassem em torno desse tema e produzir um texto que demonstrasse um ponto de vista específico. Ah, não, espera! Os artigos tinham que mostrar visões diferentes e o seu texto deveria mostrar as diferentes opiniões sobre o tema. Sabe quando você senta para escrever algo e não sai nada? Pois é, nunca tive esse problema, mas eu nunca demorei tanto pra escrever algo pra alguém como na aula dessa mulher, simplesmente porque eu me perguntava, a cada instante, se o que eu estava fazendo seguia remotamente alguma das instruções contraditórias que ela havia passado.

No fim, eu não sei o que funcionou ou não. Terminei a aula com nota A-, o que é muito mais do que eu estava esperando. Eu entregava cada prova e trabalho pensando: "não faço ideia do que essa professora vai pensar disso", e estava sempre preparado para tomar na cara. Então, foi surpreendente receber essa nota e ainda mais surpreendente ouvir dela que eu era, com certeza, o melhor aluno da classe. Se fosse outra professora, talvez eu tivesse ficado feliz e me sentido realizado. Mas, com essa, eu só agradeci e pensei: "será que posso acreditar que você leu de fato algum dos textos que escrevi?".

Enfim, fico feliz de ter ido adiante e deixado essa disciplina (e, principalmente, essa professora) para trás. São 3 créditos a menos para eu obter o certificado, e é só isso que eu posso salvar da aula. A nota é ótima para o meu currículo acadêmico e, aliada à nota da aula de francês oral (que foi um A), me deixa numa boa situação já no primeiro trimestre do programa. Vamos ver como será o resto. Só tenho certeza de uma coisa: se eu me inscrever para uma disciplina e essa professora estiver escalada, eu tranco antes da primeira aula.

À bientôt!